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No considerado “paraíso natural” de Pernambuco, edifícios prontos ou em construção e casas à beira-mar crescem desordenadamente e dão o tom do que pode se tornar a paisagem nas praias de Porto de Galinhas e adjacentes em um futuro próximo.
Essa realidade, que se intensificou nos últimos anos, ganhou o debate público na semana passada, quando a Prefeitura do Ipojuca vetou projeto de lei que diminuía a altura permitida de imóveis - uma recomendação já feita ao poder municipal pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) - alegando inconstitucionalidade. Nesta esteira, o MPPE promove nesta quarta-feira (15) audiência para discutir a verticalização no Ipojuca: uma tendência já presente no município.
A ocupação do balneário por grandes edificações vem acompanhada de uma legislação confusa até para estudiosos consultados pela reportagem e que é corroborada, em grande parte, pelo atual Plano Diretor (lei que orienta a ocupação do solo urbano), aprovado em 2008 a contragosto de urbanistas que se opõem à verticalização na área.
O documento que permitia construções com até quatro pavimentos (térreo e três andares) na beira-mar de Porto de Galinhas para hotéis, resorts e outros tipos de usos, trazia ao mesmo tempo como prioridades a preservação dos ecossistemas, da mata atlântica e das características originais da paisagem, além da garantia de moradia às famílias em áreas de risco e o fortalecimento da cadeia produtiva do turismo e de lazer.
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Mesmo com a lei permissiva, a fiscalização falhou, já que é fácil encontrar na praia construções posteriores à sua sanção que ferem tais parâmetros, com adição de coberturas ou estacionamentos subterrâneos. Levantamento feito por grupo de trabalho da Prefeitura do Ipojuca criado a pedido do MPPE no último ano mostrou que várias edificações foram erguidas com irregularidades em Porto de Galinhas.
A quantidade, no entanto, não foi revelada à reportagem. A gestão informou que os proprietários destes edifícios foram intimados e deverão apresentar uma justificativa legal para tê-los projetado fora dos parâmetros. A partir disso, segundo a gestão, será determinada a demolição ou ações compensatórias - que serão definidas caso a caso.
“Uma lei importante como o Plano Diretor foi aprovada e foi sendo modificada com o tempo no Ipojuca, e a prefeitura não tem uma estrutura para mantê-la consolidada. É difícil saber o que está valendo, mas não havia na lei anterior uma permissão para verticalizar como está acontecendo", pontuou o consultor urbanístico e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Geraldo Marinho.
"Fico espantado como na área principal de Porto há construções muito altas, que ultrapassam o limite permitido. Talvez exista alguma expectativa do mercado para alterar a lei para que isso aconteça, e é necessário ter esse cuidado. É um horror que isso esteja acontecendo enquanto a revisão do Plano Diretor está atrasada”, concluiu.
Para barrar esse processo, um projeto de lei (PL) de autoria do vereador Deoclécio Lira (PSD), aprovado pela Câmara Municipal em 23 de novembro, propunha limitar a altura de imóveis residenciais, não residenciais ou mistos em até três pavimentos em toda cidade, e em dois na faixa da orla.
O PL foi vetado na última semana pela prefeita Célia Sales (PTB) “por motivos técnicos”, segundo o secretário do Meio Ambiente da cidade, George do Rêgo Barros. Mas o chefe da pasta garantiu que o novo Plano Diretor apertará o cerco contra a especulação imobiliária na cidade, reduzindo a altura na orla para até dois pavimentos e expandindo este limite conforme se distancia da praia.
“A mesma questão que estava no projeto de lei será tratada no nosso Plano Diretor e pela Lei de Uso e Ocupação do Solo, que vão ser enviados à Câmara nesta semana. E de forma mais ampla, inclusive, já que estamos prevendo cinco faixas indo da praia até a parte do município mais distante do litoral, abaixando a altura permitida dos imóveis a partir da aproximação da faixa da orla", disse George.
"Na beira-mar, só serão permitidos dois pavimentos, desde o pontal de Camboa até o de Toquinho”, afirmou ele sobre o documento que já deveria ter sido revisado há três anos, como determina o Estatuto da Cidade, em um longo processo que precisa contar com a participação da sociedade e de votação parlamentar.
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O setor imobiliário refuta a mudança. Para a Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Pernambuco (Ademi-PE), os quatro pavimentos atuais não ferem a organização da cidade, mas, em vez disso, trazem desenvolvimento. Ainda, vai pleitear a regularização das coberturas e dos estacionamentos na audiência desta quarta.
“A gente vê essa lei como um desincentivo, uma vez que o estacionamento organiza o espaço urbano, tirando os carros da rua, e os telhados possibilitam prédios com áreas verdes e jardins. Iríamos qualificar o destino Ipojuca, oferecendo empreendimentos melhores que consequentemente trariam maior arrecadação para os cofres públicos”, defendeu o assessor técnico da organização, Sandro Guedes.
Urbanização excludente
Até a aprovação do novo Plano Diretor, ainda sem previsão, o valorizado balneário - cuja economia depende majoritariamente do turismo - continua sob o olhar de construtoras, perdendo pouco a pouco a identidade paradisíaca que um dia já teve.
Segundo estudo da arquiteta Mariana Silva Pontes, da UFPE, a urbanização na beira das praias do Ipojuca é um processo que começou em 1970 sem um planejamento prévio, a partir da construção das casas de veraneio. Para isso, foram aterrados mangues, destruídas dunas e privatizados trechos da praia. Um exemplo é a praia de Muro Alto, que ganhou este nome justamente devido às altas falésias que tomavam conta da orla e que sumiram para abrigar dezenas de resorts de luxo.
Como resultado, antigos moradores das áreas do litoral foram expulsos para distritos mais distantes, como Nossa Senhora do Ó, ocupado basicamente por pessoas que vivem do turismo na cidade. Agora, a praia de Muro Alto, por exemplo, é praticamente privada; além dos poucos pontos de acesso, é preciso pagar estacionamento em todos eles.
Apesar disso, há turistas que aprovam as facilidades trazidas pelos condomínios. Exemplo é o casal de agricultores sulista Dulcinéia Auxiliadora Andrade e Gonçalo Andrade, que foram passar férias no Litoral Sul de Pernambuco com o filho, e gostaram da estrutura oferecida em Muro Alto. “Estamos gostando muito, a praia é agradável, ótima para descansar”, disse a mulher.
Neste ano, o coletivo Salve Maracaípe, conhecido por expor transgressões ambientais na área, denunciou ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE) a construção de um grande empreendimento em Muro Alto sobre área de mangue.
O caso está sendo investigado, mas, por enquanto, a obra continua a todo vapor. “Pedimos embargo desse empreendimento ainda em setembro. A prefeitura chegou a fazer audiência conosco, e vendo as irregularidades recomendou a suspensão dele. Depois, voltou a liberar a obra. O MPPE nos afirmou que está esperando parecer técnico para fazer embargo judicial ou não”, contou Daniel Galvão, da associação.
Na Praia do Cupe, o bugueiro Gilson José da Silva, 42, viu o negócio despencar nos últimos anos. Isso porque, com a construção de dezenas de resorts na beira da praia, as alamedas que davam acesso ao mar foram fechadas, sobrando apenas três e diminuindo o percurso possível para os passeios turísticos.
“A gente não tem mais tantos acessos à praia. Os próprios moradores fecham, colocam cercas. Nos prejudica porque nosso passeio está acabando, como na Camboa, que agora é privado e não podemos entrar. Isso começou a acontecer com as obras dos condomínios”, expôs.
As consequências estruturais e ambientais
Enquanto a cidade cresceu, a infraestrutura continuou precária. Estima-se que apenas 20% do Ipojuca disponha de um sistema de saneamento básico. No restante, o despejo é feito de forma precária ou irregular.
No começo deste ano imagens do esgoto correndo para o mar de Porto de Galinhas viralizaram. Após o caso, a Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH) fez uma fiscalização no sistema de esgotamento sanitário do município e aplicou uma multa de R$ 20 mil ao perceber que eram usados poços de acumulação e retirada do esgoto por meio de caminhões limpa-fossa.
Segundo comerciantes da área, a cena se repete todo período de chuvas, impossibilitando-os de trabalhar e afastando os turistas.
“O saneamento não consegue aguentar tudo isso. Em dia de chuva, tudo enche, até o centro, não precisa nem engrossar. Para a gente que trabalha com turismo fica difícil, e quem vem visitar espera uma coisa mais decente. Quando era mais rústico (com menos construções), já não suportava, imagina agora?”, questionou o bugueiro Luiz Lopes, 43, que trabalha em Porto há 20 anos.
Mas o assessor da Ademi-PE explica que, para cada grande empreendimento, há um meticuloso estudo sobre a destinação do esgoto.
“Essa talvez seja a grande diferença do setor da construção civil para o informal, que não é fiscalizado e faz com que o esgoto pare nos córregos e nos rios. Já o formal precisa de anuências prévias, aprovação, licenciamento da obra antes mesmo dela começar. Envolve vários órgãos. Se for um empreendimento maior, é preciso fazer estudos de impacto ambiental e de vizinhança”, contou Sandro.
No pacote de serviços para o litoral Sul do Estado, o Governo de Pernambuco anunciou em outubro deste ano o início do processo de contratação das obras da primeira etapa do sistema de esgotamento sanitário de Porto de Galinhas, com recursos da ordem de R$ 60 milhões.
Sob responsabilidade da Compesa, a intervenção prevê a construção de duas estações elevatórias e recuperação outras duas de esgoto, a implantação de 25 quilômetros de rede coletora e recuperação de mais 3,5 quilômetros de rede, além de uma estação de tratamento de esgoto. A expectativa é que a obra seja concluída em março de 2023 e beneficie 28 mil moradores da localidade, elevando o índice de saneamento do município para 60%.
Com a voz, o povo
A premissa básica do urbanismo é de que uma cidade deve ser elaborada com base nas vontades de quem nela vive, preservando as características que a tornam única, segundo o consultor Geraldo Marinho.
“A norma precisa traduzir a intenção da maioria da população, o que os cidadãos do município desejam como qualidade urbana. O que o cidadão de Ipojuca quer? Qual imagem se deseja da cidade? Não há uma regra só, já que a cidade é composta por várias paisagens. Mas no caso de uma cidade turística, como acontece com Porto de Galinhas, é perigoso colocar em prática uma verticalização, porque está em jogo a natureza, que é o principal atrativo do destino”.
Sendo assim, a reportagem visitou Ipojuca na última sexta-feira (10), e conversou com muitos nativos ou comerciantes locais, e todos compartilhavam da mesma indignação contra a urbanização desenfreada no litoral. O comerciante Fernando Augusto, 56, conhecido como “Balaco” em Maracaípe, disse já desconhecer a cidade nasceu e foi criado.
“Nesses últimos quatro anos, a quantidade de prédios construídos foi desembestada, com 400 ou 500 apartamentos, está muito feio. Cada pessoa que vem, vem com um carro. E qual estrutura Ipojuca tem para receber esses carros? Ficam no meio da rua, atrapalhando a locomoção. O município não está capacitado para atender a isso tudo, e parece não ter uma fiscalização”, opinou.
A arquiteta e urbanista Lucia Veras, da UFPE, aponta que verticalizar frentes litorâneas como a praia de Porto de Galinhas seria destruir “o que atrai as pessoas para esse lugar tão especial”: a própria paisagem.
“Não faz parte dessa paisagem, do espírito desse lugar e acarreta inúmeros problemas para o futuro: saturação na infraestrutura, como água, esgoto, sistema viário; criação de ilhas de calor e desregulação térmica pelos ventos canalizados que impactam no conforto das calçadas; criação de áreas de sombreamento na orla prejudicando, em determinadas horas do dia, o "banho de sol"; atração de um tipo de uso e investimentos que talvez afaste antigos usuários que já fazem parte desse lugar", e questionou: "Para quem se está verticalizando? Para atender a quem?”.