Atualizada às 16h03
Os três dias do julgamento do Caso Tamarineira atraíram os olhares de Pernambuco na última semana. Além de Miguel da Motta Silveira Filho, sobrevivente do episódio que vitimou a esposa e o filho e a babá grávida da família, e de João Victor Ribeiro de Oliveira, motorista que dirigia bêbado e causou o acidente, uma outra pessoa ganhou o protagonismo naquele tribunal: a juíza Fernanda Moura de Carvalho.
De terça, 15, a quinta, 17 de março, o caso era foco de maior parte do noticiário, já que todos queriam saber qual seria o desfecho da trágica colisão de trânsito na Zona Norte do Recife que deixou três vítimas fatais em 2017. A postura firme, ponderada e humana fez de Fernanda Moura uma das personagens mais comentadas das sessões 1ª Vara do Júri, no Fórum Desembargador Rodolfo Aureliano, no bairro de Joana Bezerra.
Primeiro, deixando sua cadeira para acalmar o acusado, que, em um ato de desespero, clamava por perdão de joelhos durante o depoimento de Miguel. Depois, ao exigir que a promotora de Justiça Eliane Gaia respeitasse o direito do réu de se defender. Por fim, ao declarar a sentença decidida pelo júri popular que encerraria aquela discussão, condenando João Victor a 29 anos, quatro meses e 24 dias de prisão.
Passado o fervor provocado pelo julgamento, o JC a procurou para conversar sobre sua vida, convicções e motivações no mundo do direito, assim como os momentos mais acalorados das sessões, a sentença proferida e como lida com a influência da mídia e da sociedade quando preside júris de grande repercussão como o do acidente da Tamarineira.
Confira a entrevista:
Jornal do Commercio: Como a senhora escolheu o direito? Conte um pouco da sua trajetória e de como se sente na profissão que exerce.
Fernanda Moura de Carvalho: A escolha foi bastante aleatória até, porque aos 17 anos na década de 80 não se tinha muito conhecimento como os adolescentes têm hoje. Para mim deu certo, porque sou bastante realizada com a minha profissão. Tenho perfil de servidora pública e cheguei nessa área aos poucos. Primeiro como funcionária da Caixa, depois como servidora da Justiça Federal, depois promotora de justiça, até chegar à magistratura, em 1994. É imensamente gratificante prestar um serviço à sociedade. Na área criminal, nos damos conta do quão necessário é que você exerça sua função com olhos voltados às pessoas menos assistidas e que dê um viés mais democrático ao processo penal.
JC: Como ganhou essa visão de justiça pelos “menos assistidos”?
Fernanda Moura de Carvalho: Não boto isso na conta do altruísmo. O que me leva a ter essa postura mais voltada para essas pessoas é simplesmente conhecimento de que o processo penal hoje é constitucional. Eu posso gostar ou não, mas o que vai determinar minha atuação é a presunção de inocência. Não posso prender sem ter fundamentos e nem priorizar o estereótipo do cidadão. Esse aspecto mais humanista não é convicção pessoal — até é, em determinados momentos, — mas não é isso que justifica minha atuação: o que justifica é a constituição. Isso traz ao processo uma visão não punitivista e não seletiva.
JC: Na sua opinião, esse processo “humanista”, como a senhora diz que a Constituição de 1988 traz, é muito deturpado hoje?
Fernanda Moura de Carvalho: Sem dúvidas. Enquanto juíza, lido com processos calcados no inquérito policial, que é construído em outras bases. Será que a polícia é tão pouco seletiva? Será que busca o fato e não o autor do fato previamente? Muitas vezes os inquéritos chegam viciados de estigmas, de seleções prévias que o Estado como um todo faz, com triagens a partir de gênero, cor, orientação sexual, intelectualidade, endereço... Lamentavelmente, o direito penal está a serviço disso. Quanto menos evoluído o Estado, mais ele se vale do direito penal. Quanto menos políticas públicas, mais política penal.
JC: A senhora já julgou outros casos de grande repercussão, como o de Remís Carla Costa, estudante do Recife que foi vítima de feminicídio em 2017. O que muda, se é que muda, quando a internet, a mídia e a população estão acompanhando o desenrolar de um julgamento? Como é estar no centro dessa repercussão?
Fernanda Moura de Carvalho: A influência da mídia no processo penal não é de todo positiva. Nós, juízes e os jurados, principalmente, sofremos a influência como cidadãos, mas juízes do tribunal do júri ficam mais confortáveis porque não decidem o mérito da causa, e sim o conselho de sentença. Nossa função é, primeiro, ser o mediador dos debates de forma firme a preservar o exercício da prerrogativa de acusação e do direito de defesa, para que as verdades sejam postas e o conselho alcance o veredito. Depois, concretizar a decisão do conselho. Obviamente, nos momentos que antecedem a isso, como decretação de medidas cautelares, sofremos a influência da mídia, mas o exercício da função nos amadurece e criamos uma certa blindagem.
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JC: Um dos momentos mais emblemáticos do julgamento do Caso Tamarineira foi sua discussão com a promotora de Justiça, pedindo respeito ao réu. Por que a postura dela contra o acusado a incomodou tanto?
Fernanda Moura de Carvalho: O ambiente do julgamento pelo júri é essencialmente oral e instantâneo. Tudo se processa e se decide ali. Talvez, pela imediatidade do processo, este seja o momento mais suscetível a embates mais acalorados, mas nada foge do que já é esperado do julgamento. Os argumentos vêm de uma forma mais incisiva e, quando os achamos impertinentes, temos que ser ainda mais incisivos para poder restaurar a ordem e assegurar que cada um exerça seu papel no momento correto. Quando o acusado está sendo interrogado, aquele momento é sagrado. A constituição assegura a ele a plenitude da defesa; diferentemente da acusação, que é limitada. Naquele momento não cabiam intervenções.
JC: Como presidenta da sessão, a senhora foi desautorizada, e o público que acompanhava o caso recebeu bem sua reação firme contra a promotoria. Poderia ter aplicado algum tipo de punição? Por que não o fez?
Fernanda Moura de Carvalho: Todos ali estavam permeados por uma certa ansiedade. O processo, a situação do julgamento, o público e as vítimas geraram uma certa comoção. Todas as partes estavam sob influência disso, e eu boto na conta da emoção, mas tudo foi perfeitamente contornado. Não vou entrar no mérito se havia algum fundamento para punição, isso não me cabe. Se eu tivesse uma postura mais incisiva em relação ao Ministério Público ali, talvez dissolveria o conselho e encerraria o julgamento sem alcançar o termo final, o que não era o objetivo de ninguém. Conseguimos cumprir o julgamento com a decisão do conselho e a aprovação da sentença.
JC: A senhora falou sobre como o processo precisa estar calcado nas bases da constituição, mas também como o envolvimento da mídia pode atrapalhar o processo, causando uma comoção na sociedade. Qual é o perigo de misturar a sede de vingança com o pedido por justiça?
Fernanda Moura de Carvalho: A função do juiz é podar esses excessos. O judiciário também sofre influência de toda informação que chega até nós. Devemos mitigá-la o máximo possível para fazer o que a lei determina. Parece que o juiz tem a função de ser contramajoritário; não é a expectativa social pela prisão que vai determinar ao acusado a decretação da prisão. Também vemos práticas de crimes que são tolerados pela sociedade por argumentos extrajurídicos, como “matou, mas a vítima provocou” - isso também não tem legitimidade, e temos que ficar apartados dessas convicções na medida do possível.
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JC: A sentença de João Victor teve tipificação de dolo eventual, que ocorre quando o autor não quis atingir aquele resultado, mas conhecia e assumiu o risco. Sei que esse conceito é um pouco polêmico no mundo do direito, é comum que aconteça para mortes em trânsito?
Fernanda Moura de Carvalho: Já há condenações nesse sentido. O Supremo já decidiu pela possibilidade do dolo eventual. Claro que, pela repercussão que o caso tomou, o efeito da punição é diretamente proporcional à comoção causada pelo fato em si.
JC: A senhora acha que esse julgamento será um marco para que as leis sejam eventualmente endurecidas e não tenhamos mais tantos casos como esse? O que nós, como sociedade, podemos aprender com isso?
Fernanda Moura de Carvalho: A punição tem esse objetivo educacional e de prevenção geral. Talvez nessa medida esse julgamento traga alguma repercussão da reformatação de valores e de concepções, porque esse é o objetivo da pena. A punição é um fator coadjuvante para a formação da sociedade.
JC: Nas redes sociais, as pessoas vibraram pela condenação dada. Existe motivo para comemoração?
Fernanda Moura de Carvalho: Não me cabe falar isso, acho que a sociedade vai repercutir a decisão judicial a partir dos seus valores. Se temos uma sociedade que usa do direito penal como forma de apaziguamento e de justiça, certamente vibrará com a condenação. Se é certo ou errado é outra história. Parece que o direito penal está sendo mal utilizado porque está sendo a primeira razão, não está sendo reservado à última instância, como deve ser. Em países desenvolvidos, democráticos e que têm um estado de bem estar social maximizado, certamente essa punição não seria comemorada.
JC: A senhora é juíza em um país onde há pouca justiça social. É possível julgar com “justiça” pessoas que nunca tiveram justiça na vida? Para a senhora, o que significa justiça e quando ela é feita?
Fernanda Moura de Carvalho: Esse é um dos dilemas que eu particularmente vivencio enquanto cidadã e juíza. Fechar os olhos e achar que o processo que eu ajudo a construir não tem cor, não tem sexo e não tem classe econômica seria ingenuidade demais da minha parte. Em contrapartida, sou obrigada a cumprir a lei. Esse dilema poderia ser apaziguado se tivéssemos o desenvolvimento efetivo de políticas públicas que garantissem acessibilidade ao mínimo vivenciado a todos, se tivéssemos uma polícia comprometida com a busca da verdade dos fatos, sem eleger previamente os seus clientes.
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