CHUVAS EM PERNAMBUCO

Um mês após 130 mortes pelas chuvas, medo e falta de assistência continuam a imperar nas áreas de risco do Grande Recife

Tragédia que ganhou repercussão internacional pela falta de infraestrutura no Grande Recife continua presente no dia a dia de familiares das vítimas e dos milhares de desabrigados e desalojados pelo Estado

Cadastrado por

Katarina Moraes

Publicado em 27/06/2022 às 16:54 | Atualizado em 28/06/2022 às 12:21
Jardim Monte Verde, na divisa entre Jaboatão dos Guararapes e Recife, segue repleto de escombros da tragédia - SEVERINO SOARES/JC IMAGEM

Com informações de Anne Barreto, da TV Jornal

*Anteriormente, o JC havia afirmado, equivocadamente, que a Prefeitura do Recife não informou a quantidade de famílias que receberam o auxílio. A informação foi corrigida.

Nesta terça-feira, completa um mês desde o dia mais sangrento no Estado no século, quando as fortes chuvas na Região Metropolitana do Recife deixaram mais de um centena de mortos, cujos corpos foram encontrados após dias de intensas buscas. Mas aquele 28 de maio de 2022 nunca passou para Reginaldo Ramos Feitosa. Mais do que a casa, ele viu a vida também desabar naquele dia. Ao todo, 12 familiares - entre eles, a filha - foram arrastados pela força do barro e do descaso público que ainda se repete dia após dia contra cada um dos atingidos.

O lar que construiu com o salário de motorista de ônibus junto a esposa e as duas filhas no Jardim Monte Verde, entre Recife e Jaboatão dos Guararapes, se foi. “Foi onde consegui morar e educar meus filhos. Aqui, fizemos festas, comemorações, aniversários. 32 anos de alegria perdidos para 20 minutos de tristeza. Eu não caí em mim ainda”, desabafou ele. “Minha filha, que era engenheira, sempre dizia: ‘pai, agora que estou trabalhando vou ter condições de tirar você, minha mãe e minha irmã daqui’, mas o sonho foi interrompido por essa tragédia.”

A lista de vítimas fatais em decorrência das chuvas, com 130 pessoas, ao todo, começou a ser escrita em 25 de maio, com cinco vítimas. Mas a grande maioria delas - 102 - foram acrescentadas no sábado (28). Do total, 120 pessoas (92%) faleceram por deslizamentos de barreira - como a família de Reginaldo. A maioria das mortes aconteceu em Jaboatão dos Guararapes (64), seguida do Recife (50). Depois, vem Camaragibe, que registrou 7 mortes e Olinda, com 6. Limoeiro, Paulista e Bom Conselho tiveram, cada uma, um registro.

O Governo de Pernambuco prometeu uma pensão vitalícia no valor de um salário mínimo aos dependentes das vítimas fatais, e uma parcela única de R$ 1,5 mil para desabrigados e desalojados que integram o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). O governo federal liberou o saque do “FGTS calamidade” para as cidades em que decretou situação de emergência.

Mas ao voltar aos pontos mais atingidos, a reportagem se dá conta de que ainda há muito a ser feito. Reginaldo, por exemplo, não encontrou forças para voltar a trabalhar e não recebeu uma só assistência governamental, apesar de ter tido a casa destruída. “A ajuda chegou pela população, por ONGS e por voluntários, mas a Prefeitura não dá apoio. Esperamos que eles façam o papel deles, porque realmente precisamos”, pediu ele, que está morando na casa dos pais.

O motorista de ônibus Reginaldo Ramos Feitosa perdeu 12 pessoas da família - SEVERINO SOARES/JC IMAGEM

A Prefeitura do Recife informou que mais de 9,5 mil famílias receberam o auxílio das 32 mil famílias cadastradas. Em Jaboatão, 239 famílias foram cadastradas, mas "por pendências de documentos ou inscrições no CadÚnico", só 59 pagamentos foram feitos. Em Olinda, 106 das 246 famílias que estavam acolhidas em abrigos foram beneficiadas pelo auxílio até agora. Em Camaragibe, foram cadastradas 80 famílias, mas não foi informado quantas dessas já receberam.

Ausência do poder público é clara em lugares atingidos

Ser o principal cenário do noticiário estadual por um mês não foi suficiente para afastar as áreas de risco - muitas ainda com barreiras descobertas - do esquecimento. A Avenida Chapada do Araripe, na Cohab, Zona Sul do Recife, onde morreram cinco pessoas, por exemplo, sequer foi limpa pelo poder público. Há entulhos espalhados por toda parte: um cemitério das lembranças das vidas que antes ocupavam aquelas casas, das quais restaram apenas as estacas.

Jardim Monte Verde, na divisa entre Jaboatão dos Guararapes e Recife, segue repleto de escombros da tragédia - SEVERINO SOARES/JC IMAGEM
Jardim Monte Verde, na divisa entre Jaboatão dos Guararapes e Recife, segue repleto de escombros da tragédia - SEVERINO SOARES/JC IMAGEM
Jardim Monte Verde, na divisa entre Jaboatão dos Guararapes e Recife, segue repleto de escombros da tragédia - SEVERINO SOARES/JC IMAGEM

Já na Rua Alto de Santa Isabel, na parte do Cohab que pertence a Jaboatão dos Guararapes, foram registradas quatro vítimas fatais. Entre elas, o filho de 14 anos do autônomo André Luiz Ferreira da Silva, que encontrou o boné do garoto ao retornar ao local um mês depois. “É um pedacinho do meu filho”, disse ele, olhando com carinho para o acessório. Ali perto, a Rua Alto do Parnaioca, foram 17 vítimas - dessas, cinco eram primos do servente Ednaldo Marques.

André Luiz Ferreira da Silva com o boné do filho de 14 anos, morto em deslizamento - SEVERINO SOARES/JC IMAGEM
André Luiz Ferreira da Silva perdeu o filho de 14 anos no deslizamento de barreira - SEVERINO SOARES/JC IMAGEM

“Quando venho aqui, é uma sensação de dor, de perda; não é fácil para a família. A comunidade se mobilizou para resgatá-los, mas todos que tirávamos saiam sem vida. Elas estavam soterradas sob barro e tijolos da casa. Era uma dor só de olhar. Minha prima foi encontrada com os braços abertos e, em cada um, estava uma das suas crianças. Morreu tentando protegê-las”, relatou o servente.

Ainda há milhares de desabrigados e desalojados pelo Estado

Na segunda-feira (27), em todo o Estado, pelo menos 25.006 pessoas continuavam desalojadas - precisaram sair do imóvel temporariamente - e 1.665 desabrigadas - por terem perdido a casa. O número reduziu nas últimas semanas após dezenas de abrigos terem sido desmobilizados pelos municípios, deixando as pessoas que neles encontravam um teto sem ter para onde ir.

“Passei três dias em uma igreja, depois 15 em um colégio. As aulas tiveram que voltar e nós saímos, mas cadê o auxílio que não sai para a gente alugar uma casa? A gente só esquece os problemas quando dorme, e nem isso estamos conseguindo”, disse o pintor Carlos André da Silva.

No Recife, há apenas três abrigos em funcionamento atualmente. Um deles é na Escola Municipal Casarão do Barbalho, no Detran, Zona Oeste da capital. Por lá, há 47 pessoas desesperançosas, temendo a hora de ir embora. “Dizem que vão pagar um auxílio moradia quando sairmos, mas onde conseguimos alugar casa com R$ 300? Moravam 7 pessoas na minha casa, onde eu vivia há 26 anos. Foi o primeiro inverno que precisei sair, nunca tinha caído barreira”, disse a dona de casa Elizama Eliza Ramos, moradora do Ibura, Zona Sul.

Falta o básico para quem perdeu tudo

Após o desastre, o servente Ednaldo Marques ouviu de servidores públicos que lonas seriam posicionadas no Jardim Monte Verde, mas, até agora, nem isso foi feito. “É um descaso. Se diante de uma tragédia dessa ninguém chega para ajudar, eu fico desacreditado. Só mandaram sair de casa, mas para onde vou, se estou desempregado? Vai fazer um mês e não recebemos nada, só conversa”, contou.

Zelador Alexandre Francisco de Souza ainda não conseguiu tirar os documentos - SEVERINO SOARES/JC IMAGEM

Incontáveis pessoas pelo Grande Recife tiveram os documentos pessoais estragados com os alagamentos e deslizamentos. O zelador Alexandre Francisco de Souza apontou que não conseguiu fazer a segunda via. “A barreira levou tudo. A minha casa está soterrada, e eu não tive coragem de entrar para pegar meus documentos. Deram um papel para tirar o registro de nascimento e disseram que iam ligar para fazer uma nova identidade, mas nada até agora.”

O único desejo, hoje, da doméstica Rosangela Maria do Nascimento, é “voltar em paz para casa”. “Está todo mundo traumatizado. Até emagreci por causa disso. Botaram terror pra a gente sair sem um trocado para pagar um aluguel. Estamos com uma criança pequena, todos assustados. Queria fazer um apelo para torar o pé da árvore da barreira para eu voltar para casa com meus filhos. Não estou aguentando isso mais não.”

Doméstica Rosangela Maria do Nascimento está desalojada desde as chuvas de maio - SEVERINO SOARES/JC IMAGEM

Cada história contada é o retrato do descaso de antes, durante e depois. Antes, com a falta de controle urbano que permitiu a construção em áreas de risco, não proporcionando habitação segura para a população em vulnerabilidade social. De durante, ao não conseguir assistir às comunidades que, em meio ao luto, retiravam corpos dos escombros por conta própria. E, agora, do descaso de depois, com a demora para garantir assistência a quem teve os bens levados pela chuva e sem a garantia de políticas públicas que impeçam que o pesadelo se repita no próximo inverno.

MEMORIAL DAS VÍTIMAS DAS CHUVAS EM PERNAMBUCO

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