No fim de 2019, antes mesmo da fuga dos passageiros do transporte público provocada pela pandemia de covid-19, a equação financeira dos sistemas de metrô já era desafiadora. Uma conta difícil de fechar. E, já naquela época, as concessões públicas - modelo que o Metrô do Recife está para ser inserido a partir de 2023 - eram tendência no setor metroferroviário.
Técnicos do setor metroferroviário já afirmavam isso. O principal argumento é que o poder público não conseguiu - nem conseguirá- custear e investir em sistemas de metrô e trens ao ponto de oferecer um serviço de qualidade com uma tarifa acessível à população. Somente uma parceria com a iniciativa privada permitiria.
Na série de reportagens Metrôs - uma conta que não fecha, realizada pelo Jornal do Commercio em parceria com a Rede Nordeste (que envolvia além do JC os jornais O Povo (CE) e o Correio (BA), e publicada em outubro de 2019, essa foi a constatação. E esse entendimento segue válido até hoje.
O que fazer para que o transporte de passageiros sobre trilhos ganhe protagonismo no Brasil? Como qualificar e, ao mesmo tempo, reduzir a ineficiência financeira da maioria dos sistemas públicos em operação? As concessões públicas seriam a solução? Essas foram alguns dos questionamentos feitos.
“Não tem como ser diferente quando não há investimento público. A falta de investimento levou os sistemas à concessão pública. Só a iniciativa privada consegue fazer os investimentos necessários para garantir uma melhor gestão e operação, com uma via permanente em boas condições e segura, trens em bom estado, uma rede aérea com boa manutenção. Agora, é preciso que haja demanda de passageiros para que dê certo. Isso é ponto pacífico”, pontua Vicente Abate, presidente da ABIFER (Associação Brasileira da Indústria Ferroviária).
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Os metrôs se tornaram pesados demais para a gestão pública de um País que ainda não se apropriou do transporte público de alta demanda – metrôs, VLTs, trens, monotrilhos. Que ainda não consegue ver os sistemas metroferroviários com olhos sensíveis e capazes de enxergar a urgência em torná-los prioritários.
Um País que ainda não tem sensibilidade para entender que investimentos e subsídios, mesmo altos, compensam porque estão sendo feitos em sistemas que transportam muito e têm infraestrutura robusta, duradoura. E que as cidades precisam deles para serem menos urbanas e mais humanas.
Confira a série de reportagens Metrôs - Uma conta que não fecha
Os pouco mais de 1.100 quilômetros de trilhos do País, com um crescimento anual lento, concentrado em poucos Estados, confirmam essa indiferença. E não é à toa que as operações privadas dos metrôs têm crescido no País. A decisão do governo federal de conceder à gestão e operação privadas os sistemas da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) - Recife (PE), Belo Horizonte (MG), Natal (RN), João Pessoa (PB) e Maceió (AL) - e da Trensurb (Porto Alegre - RS) está embasada nessa realidade.
Por tudo isso, as concessões de metrôs para a iniciativa privada ganharam força como solução de ampliação e qualificação da malha sobre trilhos do País. O início do processo de estadualização e concessão do Metrô de Belo Horizonte e o encaminhamento do sistema do Grande Recife comprovam essa lógica. E que ela é uma caminho sem volta.
Técnicos do setor defendem que o fato de operar bem não está atrelado à gestão privada ou pública. O Brasil, por exemplo, tem modelos bons e ruins de gestões públicas e privadas. São Paulo seria a melhor referência.
O engenheiro pondera que não falta capacidade técnica das equipes do poder público, ao contrário, mas a falta de investimento impede o resultado. “Não é que o poder público não tenha capacidade de fazer, mas a falta de investimento o impede. O poder público destina tudo para a saúde, educação e segurança públicas. Mas temos o público eficiente, como é o caso do Metrô de São Paulo, que sempre teve uma gestão muito eficiente, com um corpo técnico de excelência”, destaca Vicente Abate.
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EXEMPLOS PELO PAÍS
O Estado opera com eficiência linhas públicas (Metrô de São Paulo e Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e é o poder concedente em outras geridas pela iniciativa privada, como é o caso das Linhas 4 (Amarela) e 5 (Lilás), que também têm operações de sucesso realizadas pela CCR Mobilidade, do grupo CCR.
A Companhia do Metrô de São Paulo é responsável pela administração das Linhas 1 (Azul), 2 (Verde), 3 (Vermelha) e 15 (Prata) – sob gestão pública do Estado de São Paulo. As linhas concedidas à iniciativa privada – geridas pela ViaQuatro e Via Mobilidade, do Grupo CCR – são as Linhas 4 (Amarela) e 5 (Lilás), respectivamente.
Totalizam seis linhas e 100 quilômetros de trilhos que transportavam cinco milhões de passageiros por dia e aproximadamente 1 bilhão por ano (segundo dados de antes da pandemia).
Já a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) tem 273 km de trilhos e atende 23 municípios da Região Metropolitana de São Paulo. Por dia, transportava 3,2 milhões de pessoas e, por ano, 900 milhões de passageiros (também segundo dados de antes da crise sanitária). A gestão também é do governo de São Paulo.
A Linha 4 (Amarela), inclusive, foi a primeira Parceria Público-Privada metroferroviária do País e virou referência no setor. Os trens são equipados com o sistema driverless (operam sem condutor), operação automática que é inédita na América Latina e é considerada a mais segura do mundo, sendo utilizada em diversos metrôs da Europa e da Ásia, principalmente.
Com a tecnologia, o intervalo entre os trens pode chegar a 90 e, até, a 75 segundos, se assim o Centro de Controle Operacional desejar. A Linha 4 (Amarela) ainda possui as portas de plataforma, que são divisórias de vidro que separam a plataforma dos trilhos. O equipamento, além de bonito, oferece mais segurança aos passageiros e, consequentemente, à operação.
O EXEMPLO PÚBLICO
A rede metroferroviária gerida pelo poder público em São Paulo, entretanto, não fica atrás. A taxa de cobertura financeira do sistema já superou os 100%. E, para isso, a gestão foi em busca de eficiência operacional e administrativa.
Em 2019, o governo do Estado de São Paulo informou que incluiu essa busca icluiu desde a reorganização administrativa (incluindo o Plano de Demissão Voluntária – PDV, a terceirização da bilheteria, e o credenciamento do metrô para venda do Bilhete Único), até o ressarcimento, pelo governo do Estado, de 100% da gratuidade e do apoio financeiro à PPP da Linha Amarela.
RECEITAS EXTRA-TARIFÁRIAS
Outra estratégia que ganha força nas operações metroferroviárias e reflete a lógica financeira do setor privado são as receitas extra-tarifárias. É a exploração dos espaços – dentro e fora das estações e linhas – com projetos de varejo, publicidade, tecnologia e até de desenvolvimento imobiliário.
O Metrô de São Paulo, como operador público, também tem dado lições nessa área. Quem usa o sistema, passando por qualquer uma das estações de embarque e desembarque, fica impressionado com a quantidade de publicidade distribuídas nos espaços.
Dados mais antigos comprovam esse filão. Em 2017, as receitas não-tarifárias responderam pela geração de R$ 248,3 milhões. Em 2018, representaram 11% da receita tarifária da companhia. E a expectativa era de alcançar, em pouco tempo, o percentual de 15%.
“As receitas extra-tarifárias já respondem por 20% da receita do Metrô de São Paulo. Respondiam por 10%. Isso demonstra competência e boa gestão. No Japão, por exemplo, a propaganda, o marketing e o retorno das edificações multiusos nas estações chegam a representar 70% da receita do sistema metroviário”, exemplifica o presidente da Abifer.
METRÔ CONSULTING
De tão eficiente e experiente na operação metroferroviária, o Metrô de São Paulo criou a Metrô Consulting, uma divisão para compartilhar o conhecimento de quem planeja e opera a maior rede metroviária do Brasil há 50 anos. Depois de disputar a operação como ente privado do Metrô do Distrito Federal, é uma das empresas que concorre para operar o Metrô de Quito, no Equador, possivelmente com algum parceiro privado.
O Metrô equatoriano terá 18 trens fornecidos pela Caf, com seis vagões cada e capacidade para transportar 1.500 passageiros. A viagem entre Quitumbe e El Labrador levará cerca de 34 minutos a uma velocidade média de 40 km/h.
RIO DE JANEIRO
O MetrôRio, no Rio de Janeiro, é outro exemplo. Foi estadualizado e, posteriormente, virou concessão pública com um desempenho satisfatório.
O EXEMPLO DA BAHIA
Já em Salvador, na Bahia, foi a iniciativa privada que conseguiu alavancar o projeto, que era municipal e ficou parado por mais de dez anos. Houve a estadualização e, em seguida, uma PPP (Parceria Público-Privada). Só assim o metrô avançou e tornou-se emblemático no setor.
Foram 14 anos de espera entre o início das obras e o momento em que o metrô de Salvador saiu da estação pela primeira vez, ainda na fase de testes. A demora fez o equipamento ser alvo de piadas e brincadeiras entre os baianos. Depois de oito anos operando e servindo a soteropolitanos e turistas, o metrô segue se modernizando.
O Sistema Metroviário de Salvador e Lauro de Freitas é operado pela CCR Metrô Bahia, que administra atualmente 20 estações de metrô e sete terminais de ônibus com integração com o modal.
Não é que o poder público não tenha capacidade de fazer, mas a falta de investimento o impede. O poder público destina tudo para a saúde, educação e segurança públicas. Mas temos o público eficiente, como é o caso do Metrô de São Paulo, que sempre teve uma gestão muito eficiente, com um corpo técnico de excelência”,Vicente Abate, presidente da Abifer
O sistema se consolidou e recebeu, em 2018, investimentos de R$ 506 milhões. Em 2019, foram mais R$ 183,5 milhões. Tem 33 quilômetros em operação, que compreendem duas linhas e ligam Lapa a Pirajá e Acesso Norte ao Aeroporto.
A previsão era de chegar a 43 quilômetros. Antes da pandemia, o sistema atendia diariamente 400 mil passageiros. Atualmente está transportando 320 mil.
O governo do Estado da Bahia ficou de repassar dados mais atualizados, mas até a publicação desta reportagem não tinha enviado. E a CCR Metrô Bahia, não tinha autorização para o envio dos dados mais atualizados.
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INOVAÇÕES
Entre as inovações do Metrô de Salvador, o sistema Próximo Trem se destaca por informar em tempo real a chegada dos trens - algo básico e que o Metrô do Recife não tem faz tempo.
São monitores instalados nas plataformas das estações que não só informam o tempo de chegada do próximo trem, mas também a sua lotação. O sistema, vale ressaltar, foi desenvolvido pelas equipes de engenharia, manutenção e tecnologia da CCR Metrô Bahia. Assim, o cliente pode escolher o local do trem que está mais vazio para embarcar.
EXEMPLO NEGATIVO
A SuperVia, sistema de trens urbanos que atende a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, é um exemplo negativo. Virou concessão pública e há muitos anos enfrenta dificuldades financeiras que repercutiram negativamente na operação.
TIPOS DE CONCESSÕES E MALHA SOBRE TRILHOS
As concessões públicas no sistema metroferroviário podem ser em dois modelos: PPPs em que o investimento na infraestrutura é feito pelo poder público (Estado ou União) e a iniciativa privada apenas opera; e as que o privado também investe na infraestrutura, além de assumir a operação. Todas, entretanto, são concedidas por um período de 20 a 30 anos.
Segundo dados da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), o Brasil está implantando seis novos projetos para o transporte de passageiros sobre trilhos, Entre eles, quatro já estão sendo concebidos no regime de Parceria Público-Privada (PPP), o que representa 75% dos novos empreendimentos.