Juíza da 1ª Vara do Júri da Capital, Fernanda Moura de Carvalho se equilibra na linha tênue entre o dever de fazer valer a lei em sua integridade e levar em conta os paradoxos humanos — e desumanos, por vezes — que encontra nos tribunais. E foi justamente essa a postura que fez com que ela se tornasse, mesmo sem intenção, uma das protagonistas de um dos julgamentos mais aguardados do Recife nos últimos anos: o do Caso Tamarineira.
Até chegar a sua sala no Fórum Desembargador Rodolfo Aureliano, no Bairro de Joana Bezerra, o JC tentou por dias contato com a juíza. Só que após as três sessões da última semana que levaram João Victor Ribeiro de Oliveira a ser condenado a mais de 29 anos por ter dirigido bêbado e provocado a colisão que matou três pessoas em 2017, Fernanda precisou de um tempo para se recompor.
Mas conseguimos. Preparada para a sisudez que está acostumada a ver no mundo do direito, a equipe de reportagem foi surpreendida com um sorriso terno, toque suave e simplicidade ao falar — e, de cara, com um discurso sempre carregado de opiniões fortes; algumas que, devido à posição que ocupa, devem permanecer no secreto da relação entre jornalista e personagem.
Sua firmeza e olhar para o outro fez com que a magistrada tivesse momentos-chave no júri popular. Primeiro, quando deixou sua cadeira para acalmar o réu, que, em um ato de desespero, clamava por perdão de joelhos durante o depoimento emocionado do sobrevivente Miguel da Motta Silveira Filho. Depois, ao exigir que a promotora de Justiça Eliane Gaia respeitasse a fala dele durante a defesa.
Fernanda não justifica essas ações, no entanto, pelo “altruísmo", e sim pelo cumprimento da Constituição. “Quando achamos os argumentos impertinentes, temos que ser incisivos para poder restaurar a ordem e assegurar que cada um exerça seu papel no momento correto. Quando o acusado está sendo interrogado, aquele momento é sagrado. A constituição assegura a ele a plenitude da defesa.”
Formada na Faculdade de Direito do Recife (FDR), a juíza, hoje com 55 anos, quase decidiu ser dentista, a profissão da mãe, e disse ter chegado à área jurídica por acaso. Descobriu a vocação para o serviço público quando foi servidora da Caixa e da Justiça Federal. Antes de chegar à magistratura, em 1994, foi promotora de Justiça. No caminho, teve um filho, hoje com 30 anos, que seguiu os passos da mãe e virou defensor público: “é legal ver esse espelhamento”, afirma.
Em 28 anos de tribunal, já julgou “mais de mil processos”, sem ter certeza do número exato. Alguns, como o da Tamarineira e o de Remís Carla Costa, estudante vítima de feminicídio em 2017, sob olhares de dezenas de câmeras. Outros, a maioria deles, às escuras. A relação da mídia com os julgamentos é para ela uma dicotomia entre “o excesso de publicidade”, que influencia a sociedade como um todo, e o direito à informação.
“Nós também sentimos essa influência, mas juízes do tribunal do júri ficam mais confortáveis porque não decidem o mérito da causa. Obviamente, nos momentos que antecedem a isso, como decretação de medidas cautelares, sofremos a influência da mídia, mas o exercício da função nos amadurece e criamos uma certa blindagem”, pontua.
Influência ainda mais perigosa são os estigmas sociais, os quais a juíza procura perder todos os dias, deixando sempre claro ter ciência dos privilégios que possui. ”Achar que o processo que eu ajudo a construir não tem cor, não tem sexo e não tem classe econômica seria ingenuidade demais. Em contrapartida, sou obrigada a cumprir a lei.”
Um dilema que, para ela, poderia ser apaziguado se houvesse o “desenvolvimento efetivo de políticas públicas” e “uma polícia comprometida com a busca da verdade dos fatos, sem eleger previamente os seus clientes.” Enquanto o Brasil não alcança o estado de bem-estar social, diz Fernanda, o direito penal continuará a ser mal utilizado, “porque está sendo a primeira razão, não está sendo reservado à última instância, como deve ser”.
Já ex-professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), a juíza já poderia ter se aposentado dos tribunais, mas a necessidade de contribuir para que o processo penal seja desenvolvido com viés mais democrático e voltado às pessoas menos assistidas a faz continuar. Uma paixão pelo ofício que às vezes causa até frustrações, por ser difícil deixar no escritório as dores do Brasil desigual que é revelado nos tribunais.
Mas nunca carrega a “carteirada”. “Não levo minha função além dos limites do seu próprio exercício. Sou Fernanda, sou juíza da 1ª Vara do Júri, mas só nesse ambiente. Fora daqui, sou cidadã”. Ao deixar a toga em sua sala e voltar para a casa onde vive com os seus três cachorros, faz “o que qualquer pessoa faz”. Corre, lê, vai ao cinema, à igreja e até toma uma cerveja, “claro”.